quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Estes sinais




Aquelas férias escolares ela passou quase toda na casa da prima. As duas, meninas-virando-moças, nasceram juntas, cresceram juntas, aprenderam a namorar juntas. E foi nesta escola de beijar na boca que as duas aproveitaram a saída adiantada da tia avó – aquela que recebia as ordens de não deixá-las sair na rua com estranhos – para se agarrarem no portão com dois moços-virando-homens que viviam tocando a campanhia por ali.
Sua mãe, ao telefone, prometeu buscá-la por três finais de semana seguidos, “não seria aquele que ela iria aparecer”, ela pensou. Mas foi exatamente no momento em que a mão do moço resolveu passear por outros cantos que ali, na esquina da rua, ela pode avistar por de cima do ombro do menino o carro de cor verde e marca do de sua mãe se aproximando.
Agarrou a prima pelo braço, enfiou-a para dentro, portões trancados, portas com devidos cadeados, e um coração saltando pela boca.
Um minuto, alguns minutos ... nada ... a campanhia. Eram os meninos rindo alto e dizendo: “Era só um carro qualquer.” Então elas mais que rapidamente voltaram ao ponto em que estavam na aula anterior. “Pra onde estava indo a sua mão mesmo?”
Entre um beijo e outro ela abriu os olhos e viu outro carro igual ao de sua mãe, ignorou. Não era sua mãe, não podia ser sua mãe. E foi no toque mais grosso do que sutil em suas costas que ela percebeu ter alguma companhia a mais. Quando se deu conta estavam lá o carro verde de sua mãe, sua mãe, seu pai, e mais alguns integrantes da família presenciando a tão dedicada aula de beijar.
...
Ela já tinha mais idade, idade suficiente pra decidir por onde andar sozinha e a que horas sair de casa. Um dia viu a vida levá-la a lugares, a situações, a ações. E viu que às vezes, muitas vezes, a vida dá sinais, amostras, premonições talvez, do que está por vir. Percebeu isso quando sentiu doer o coração um dia todo e pela noite o tio sofreu um acidente. Quando num dia o namorado quebrou o pé, e no outro o sogro ficou doente. Quando num dia ganhou prêmio de melhor atriz, e no outro entrou pra escola de artes cênicas. Quando num dia os olhos da irmã brilharam demais, e no outro ela se casou.

AH, SE ELA TIVESSE DADO MAIS ATENÇÃO AO CARRO VERDE...

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Dois minutos antes



No dia do casamento ela se olhou no espelho, linda. Vestido bordado à mão pelas tias. Irreconhecível até para ela mesma com a maquiagem que mudava seu sorriso e seus olhos. O buquê de flores de pano esperava num canto da sala. E era apenas ela que faltava, apenas ela em toda a parafernalha de qualquer casamento comum.
Não, ela não sumiria, não correria dos pais que a esperavam para colocá-la na enorme Limousine, não diria não no altar. Ela até que amava aquele homem, ele a fizera muito feliz nos dias de namoro. Ele era ao menos um homem de respeito e a faria feliz, ao menos lhe daria o necessário.
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Os sinos tocaram anunciando o matrimônio realizado. A lua de mel foi até que divertida. Ele foi trabalhar. Ela acabou encontrando um emprego que a tirava de casa. Os filhos vieram.
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Pesada de sono, porque o som que cercava seus ouvidos desde que fora viver ali impediam-na de fechar os olhos, ela atravessava a rua quando viu do outro lado uma senhora alta, de olhos claros, dona de si, romper de dentro da lojinha, sacolas nas mãos, livre até no andar, entrar no próprio carro e sair. Pensou que ela poderia ser solteira. Uma senhora solteira e linda. Pensou como seria a vida dela: O que ela fazia aos domingos? Quantos homens e mulheres diferentes ela conhecia? Por onde ela andava? Com que dinheiro vivia?
Se viu andando em saltos, dando ordens a empregados e rindo em bares com senhores de gravatas babando por seu cheiro. Se imaginou sozinha lendo livros e tomando vinhos, sem aqueles sons que tanto estouravam sua cabeça. Lembrou-se de como era bonita quando, ainda solteira, andava de saias e vestidos pelas ruas do bairro. Lembrou-se de como era linda cantando suas músicas prediletas. Lembrou-se de si mesma, assim, sozinha: ELA E SUA IMAGEM NO ESPELHO, DOIS MINUTOS ANTES DE ENTRAR NO ALTAR.
E quis voltar para casa olhar para todos e dizer: “Acabou. Quero voltar a mim.” Quis gritar pelas ruas que ela podia ser ela mesma, sem ninguém. Quis chorar por ter se deixado ir por tanto tempo. Quis...
...
Os filhos tiveram filhos. Os filhos foram embora deixando fotografias, ligações semanais e visitas natalinas. Ficaram os dois, ela e o homem que a vida toda lhe deu o que era necessário.
...

terça-feira, 3 de julho de 2007

Bolhas de Sabão


Ao chegar em casa encontrou seu pai sentado no sofá, ele, que era o mesmo de sempre, fumando o cigarro e olhando pela janela, perguntou: Quem é você?
ELA: A mesma de sempre, não me reconhece?
O pai fitou-a por alguns instantes com um certo olhar de desaprovação e esquecimento.
ELE: ...
Ele tem um ataque de tosse por conta do cigarro. Ela simplesmente olha, ele para de tossir, ela vai até a mesinha, pega um pouco de água e leva ao pai.
ELE: Agora não precisa mais.
ELA: Um pouco de água não faz mal a ninguém... Beba. Pai, de que você sente mais saudades?
ELE: Sinto saudades de não fumar cigarros, mas mesmo assim fumo, sinto saudade de esperar alguém que eu me lembre pela janela, e sinto saudades de te reconhecer, mas não te reconheço.
ELA: Eu tenho saudades de quando eu esperava você chegar do trabalho todos os dias no ponto de ônibus sempre exatamente às 6h12 da tarde, de quando você me dava flores no meu aniversário. Você se lembra?
ELE: Quando você me diz, não tenho certeza se me recordo ou se imagino o que você me conta. Não sei se tenho alguma recordação que seja autêntica...Mas, agora, sente-se aqui e me fale de sua mãe.
ELA: Minha mãe? (Ela também não se lembra) Talvez tenha passado muito tempo pai. (Talvez a menina não quisesse lembrar dos dias ruins, dos segredos e da loucura de saber e não poder contar, ma sabia que não poderia falar de certas coisas a seu pai. Ele não entenderia. Ele não se lembraria mesmo. Ela olha na mesa e vê no porta-retratos o dia em eles foram para a Bahia, na fotografia, ela, a irmã e a mãe, sempre tão linda). As vezes esqueço como era a voz dela.
ELE: Por que nos esquecemos? Porque esquecer é muito melhor do que lembrar, quando tudo está vazio, pode-se inventar o que quiser. Você pode inventar a sua história.
ELA: Sim pai, e nela, o senhor fuma bolinhas de sabão...(alivia-se)
ELE: Você não entendeu... (beija-a, sem qualquer estrangulamento, ela aceita)

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Dedo mindinho

Saia rodada. Pé no chão. Cabelo pra cima, suor pingando. Um homem, dois homem, cinco, dez homem, perdi a conta de quantos homem beijaram minhas mão. Coco, maracatu, tambor de crioula, cavalo marinho, pra cada dança um homem novo, um outro copo de pinga. O pé quase sangra, mas não vai parar. Até aquela menina sorriu pra mim, sem pudor, pra me agarrar na frente de todos os olhos curiosos e religiosos demais. Mas o beijo melhor da noite foi o do filho do coronel que me levou pro mato junto cos bicho e me comeu feito leão. De mim ficou só o pedacinho do dedo mindinho que ele esqueceu de comer.

domingo, 3 de junho de 2007

Da tua e da minha bela bandeira






Trezentos homens se prostram de mão no peito cantando o hino nacional enquanto a bandeira verde sobe no mastro. Ao redor, seiscentos homens armados de fuzis , metralhadoras e 38´s. Crianças correm ao redor sem repressão, crianças correm nas proximidades para não tomarem tiros nas mãos, nos pés, na cara. Flores brotam no jardim.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Anthems for a 17 year old girl


A menina nos braços do monstro, um gigante peludo e fedorento, de chifres e narinas arreganhadas, os pés de bicho e um rabo que ele esconde no meio das pernas tortas. Ela dorme. O braço gordo do feioso de alguma maneira lembra o colo da mãe e ela sonha com o dia do primeiro beijo.

O monstro sai pelas ruas, primeiro entra num cinema, depois numa escola de crianças, depois num bar. Em cada um ele esmaga com o dedão quem passa por ele gritando, ele sabe que os gritos podem acordar a menina.

O exército chega, pronto pra eliminar o bicho assustador, armas, canhões, tanques de guerra. Ele acha graça nos carrinhos, mas se enfeza quando um deles atira e quase pega na menina. Dá-lhes um chute, um único chute, e todos os pequenos de verde voam.

Assim o peludo anda pela cidade atirando, chutando, arrastando, baleando todos que atrapalham o sono da pequena. Quando tudo é sangue e cheiro podre de carniça, a menina, como uma princesa, desperta sorrindo.

Vendo os olhos brilhantes e morenos da menina o monstrengo sorri, senta-se e a coloca em seu colo. Ela já tem um carinho profundo por ele, sabe que ele é apenas um gigante querendo protegê-la. Mas ela olha ao redor, e vê o estrago que ele causou. O sangue, as casas destruídas, as pessoas despedaçadas. Ela chora, pelos homens e pelo monstro, por seu amor pelo monstro. Ele se deita, sabe que agora é sua vez de descansar com os carinhos da menina. Ela, miúda, sobe até seu pescoço e rola com o corpo fazendo um carinho pequeno, as lágrimas são um gotejar quase imperceptível e quente no monstro que adormeceu. Cercada de amor e tristeza, a pequena busca o punhal pesado, único capaz de tirar a vida do grandalhão. Com toda a força que tem levanta o punhal e crava-lhe no peito. Ele já não respira mais, não jorra sangue, não o tem. Do buraco sai um cheiro de dama da noite, ele não fede como os homens, mas os homens agora já não morrem mais.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Cartas para uma Morta


Ela está sentada em frente ao espelho, veste preto, neste instante ouve “A mais bonita”, de Chico Buarque num rádio portátil deixado ao lado do espelho. Passa nos lábios um batom escuro de mulher. Apesar da sensualidade que carrega, aumentada pelo decote excessivo e inevitável diante do corpo que o veste, ela tem no olhar o peso das lágrimas que derramou na noite anterior.
Na ponta do espelho é possível ver uma fotografia, na imagem: ela nos braços do avô paterno no dia de seu batizado, é perceptível que o avô já faleceu e que ela, de menina já não carrega mais nada. Do outro lado do espelho uma pequena caixa fechada e uma tesoura.
O batom toca os lábios, em seguida cada lábio se esfrega no outro e o vermelho toma conta de sua boca. Ela volta o olhar para a fotografia.
- Por que você não me respondeu mais? Por que parou de falar comigo? Onde você está?
Nas mãos a caixinha, a tesoura. Caixa aberta, bilhetes e segredos escancarados, a dor do silêncio das cartas não respondidas. Cada carta é repartida, do som afiado da faca da tesoura é possível sentir o sangue que escorre. Escorre da saudade, escorre da memória quase esvaziada da ausência de resposta. Escorre do peito rasgado, coração arregaçado, tesoura faca enfiada vermelho adentro.
Ao fundo vozes que falam/cantam sons mudos ensurdecedores:
“Menina que me dava mal estar,
Menina que me dava repulsa,
Menina mimada,
Menina infantil, infantilizada,
Menina doida pra arrumar namorado,
Menina, mulher, só era mulher porque o mundo quis assim.”
As vozes vão aumentando, crescendo, e aparecendo junto delas homens de narizes vermelhos, instrumentos musicais e tons irônicos, como apresentadores de TV.
A luz que volta a acender no lugar da moça de preto, mostra muitas pessoas. Pessoas que vivem num outro lugar. Cada uma vive a sua maneira. Um carrega pedras e se amarra em cordas enquanto ouve uma música de serenar. Outro carrega no peito a mulher de salto alto. Outra se olha nua espelho pra dizer: EU TE AMO. Duas meninas brincam de boneca e comem frutas. Outro fala línguas incompreensíveis.
Os homens de nariz vermelho anunciam a chegada da nova habitante do espaço.
- Irá chegar, neste nosso lugar imaginário, Lígia Helena. A menina que só queria encontrar as vozes que deixou de ouvir.
Todos se afastam formando uma enorme roda. Um dos homens de nariz vermelho traz a moça para o centro da roda, ela veste branco, e tem no centro do peito, uma mancha de sangue que, percebe-se, ainda sangra.
Do auto da roda, outro homem de nariz vermelho joga para baixo, na cabeça da moça cartas. Ela começa a abrir as cartas ansiosa.

1º carta
Oi namorida.
Não sei se, de onde você está, poderá ler isto, mas estou com saudades da Li. Da namorida, da velha, da amiga, das massagens.
Você volta?
Beijo
Dirceu

Ela entende do que se tratam as cartas, entende que ela não é a única a escrevê-las, entende, que escritas ou pensadas ou ditas, elas chegam ao lugar imaginário sempre.

2º carta
Santo André, 16 de maio de 2007

Oi Lígia!
Espero que esteja tudo bem por aí! (nossa que clichê!), aqui continua tudo a mesma coisa...acordar, dormir, ir pra escola, trabalhar....
Acredito que aí onde está, agora deve ser mais tranqüilo...
Fiquei pensando estes dias o quanto de fato te conheci...E você se foi, agora talvez seja um pouco tarde!
Até mais.
Lylian Teles.

3º carta
Oi Lígia querida,
Não sei se vou ter resposta, mas resolvi arriscar. Como nunca acreditei em nada depois da morte e como sei que você também não...
Bom por aqui tudo igual, a turma ta com saudades, eu também...Pode deixar que você estará na peça, lidando com o sagrado fica mais fácil ainda.
Fico aqui, esperando teus sinais,
Beijos
Thaís.

Feliz comemora: - Então ele leu! Ele leu minhas cartas! Ele sempre leu minhas cartas! Mas por que não respondeu? Eu quero responder as minhas, eu vou responder as minhas. (Diz isso questionando os homens de nariz vermelho.)
Um deles: Você pode responder tudo que você puder responder. Mas eles só receberão quando chegarem aqui.
Ela: Então por que ainda não recebi as dele? Ele não quis responder?
Um deles: A resposta dele está aqui: (canta Valsa para uma menininha, de Vinícius de Moraes)
Com o fim a música percebe uma carta que deixou de lado, abre:
Você muda
Eu mudo
Te vejo frágil como eu,
Criança como eu, carente
Como eu, cheias de sonhos
vontades potencialidades
medos e só (pra encurtar)
enfim...
te reconheço
me reconheço.

Obrigada
Michele.

Ela sorri e se deixa levar pelos homens de nariz vermelho, os outros voltam a fazer o que fazem sempre em seus mundos imaginários.

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Floresta de Sangue

Ah, fique comigo, não vá embora, no meu coração, está o mais belo lugar.


Acreditar no tempo? Tempo? O tempo que me deixa sozinha, sozinha na batalha com o animal/floresta/animal/Mundo/floresta? Medir o tempo sem céu, dias e noites, anos, horas, minutos, segundos.


Minha pele sobre o desconhecido. A pele do desconhecido dentro de mim. Eu, mulher, engravidada, grávida de mundo, “eu to grávida, grávida de um disco voador e vou parir”.


Este mundo/animal/floresta que carrego na barriga incha meus pés e cada vez que toco o frio, quente, áspero chão sou chupada, sugada, enterrada. Tontura, vertigem, vômito.


Necessidade de carinho, “prova a suavidade da minha pele sem nenhum interesse especial”. Cabeça, pescoço, peito, cintura, número do chapéu, medida do colarinho, tamanho do sapato.


O carinho se converte em tapa soco murro. Adaptar-se, afastar-se, antecipar-se, ir de encontro, não apadtar-se, atacar, recuar, golpe, garra, pontada, retroceder. Todo colo no qual ele veio a cair quis, vez por outra, ser seu túmulo. Ah, fique comigo, não vá embora, no meu coração, está o mais belo lugar.


Morte á mães.


Aniquilamento de mim, construção de mim, ruínas de mim, reconstrução de mim, mão esquerda no braço direito, osso ilíaco nos ossos do braço e as vozes inaudíveis ensurdecedoras a me dizer:


"Use Filtro Solar"