segunda-feira, 21 de maio de 2007

Anthems for a 17 year old girl


A menina nos braços do monstro, um gigante peludo e fedorento, de chifres e narinas arreganhadas, os pés de bicho e um rabo que ele esconde no meio das pernas tortas. Ela dorme. O braço gordo do feioso de alguma maneira lembra o colo da mãe e ela sonha com o dia do primeiro beijo.

O monstro sai pelas ruas, primeiro entra num cinema, depois numa escola de crianças, depois num bar. Em cada um ele esmaga com o dedão quem passa por ele gritando, ele sabe que os gritos podem acordar a menina.

O exército chega, pronto pra eliminar o bicho assustador, armas, canhões, tanques de guerra. Ele acha graça nos carrinhos, mas se enfeza quando um deles atira e quase pega na menina. Dá-lhes um chute, um único chute, e todos os pequenos de verde voam.

Assim o peludo anda pela cidade atirando, chutando, arrastando, baleando todos que atrapalham o sono da pequena. Quando tudo é sangue e cheiro podre de carniça, a menina, como uma princesa, desperta sorrindo.

Vendo os olhos brilhantes e morenos da menina o monstrengo sorri, senta-se e a coloca em seu colo. Ela já tem um carinho profundo por ele, sabe que ele é apenas um gigante querendo protegê-la. Mas ela olha ao redor, e vê o estrago que ele causou. O sangue, as casas destruídas, as pessoas despedaçadas. Ela chora, pelos homens e pelo monstro, por seu amor pelo monstro. Ele se deita, sabe que agora é sua vez de descansar com os carinhos da menina. Ela, miúda, sobe até seu pescoço e rola com o corpo fazendo um carinho pequeno, as lágrimas são um gotejar quase imperceptível e quente no monstro que adormeceu. Cercada de amor e tristeza, a pequena busca o punhal pesado, único capaz de tirar a vida do grandalhão. Com toda a força que tem levanta o punhal e crava-lhe no peito. Ele já não respira mais, não jorra sangue, não o tem. Do buraco sai um cheiro de dama da noite, ele não fede como os homens, mas os homens agora já não morrem mais.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Cartas para uma Morta


Ela está sentada em frente ao espelho, veste preto, neste instante ouve “A mais bonita”, de Chico Buarque num rádio portátil deixado ao lado do espelho. Passa nos lábios um batom escuro de mulher. Apesar da sensualidade que carrega, aumentada pelo decote excessivo e inevitável diante do corpo que o veste, ela tem no olhar o peso das lágrimas que derramou na noite anterior.
Na ponta do espelho é possível ver uma fotografia, na imagem: ela nos braços do avô paterno no dia de seu batizado, é perceptível que o avô já faleceu e que ela, de menina já não carrega mais nada. Do outro lado do espelho uma pequena caixa fechada e uma tesoura.
O batom toca os lábios, em seguida cada lábio se esfrega no outro e o vermelho toma conta de sua boca. Ela volta o olhar para a fotografia.
- Por que você não me respondeu mais? Por que parou de falar comigo? Onde você está?
Nas mãos a caixinha, a tesoura. Caixa aberta, bilhetes e segredos escancarados, a dor do silêncio das cartas não respondidas. Cada carta é repartida, do som afiado da faca da tesoura é possível sentir o sangue que escorre. Escorre da saudade, escorre da memória quase esvaziada da ausência de resposta. Escorre do peito rasgado, coração arregaçado, tesoura faca enfiada vermelho adentro.
Ao fundo vozes que falam/cantam sons mudos ensurdecedores:
“Menina que me dava mal estar,
Menina que me dava repulsa,
Menina mimada,
Menina infantil, infantilizada,
Menina doida pra arrumar namorado,
Menina, mulher, só era mulher porque o mundo quis assim.”
As vozes vão aumentando, crescendo, e aparecendo junto delas homens de narizes vermelhos, instrumentos musicais e tons irônicos, como apresentadores de TV.
A luz que volta a acender no lugar da moça de preto, mostra muitas pessoas. Pessoas que vivem num outro lugar. Cada uma vive a sua maneira. Um carrega pedras e se amarra em cordas enquanto ouve uma música de serenar. Outro carrega no peito a mulher de salto alto. Outra se olha nua espelho pra dizer: EU TE AMO. Duas meninas brincam de boneca e comem frutas. Outro fala línguas incompreensíveis.
Os homens de nariz vermelho anunciam a chegada da nova habitante do espaço.
- Irá chegar, neste nosso lugar imaginário, Lígia Helena. A menina que só queria encontrar as vozes que deixou de ouvir.
Todos se afastam formando uma enorme roda. Um dos homens de nariz vermelho traz a moça para o centro da roda, ela veste branco, e tem no centro do peito, uma mancha de sangue que, percebe-se, ainda sangra.
Do auto da roda, outro homem de nariz vermelho joga para baixo, na cabeça da moça cartas. Ela começa a abrir as cartas ansiosa.

1º carta
Oi namorida.
Não sei se, de onde você está, poderá ler isto, mas estou com saudades da Li. Da namorida, da velha, da amiga, das massagens.
Você volta?
Beijo
Dirceu

Ela entende do que se tratam as cartas, entende que ela não é a única a escrevê-las, entende, que escritas ou pensadas ou ditas, elas chegam ao lugar imaginário sempre.

2º carta
Santo André, 16 de maio de 2007

Oi Lígia!
Espero que esteja tudo bem por aí! (nossa que clichê!), aqui continua tudo a mesma coisa...acordar, dormir, ir pra escola, trabalhar....
Acredito que aí onde está, agora deve ser mais tranqüilo...
Fiquei pensando estes dias o quanto de fato te conheci...E você se foi, agora talvez seja um pouco tarde!
Até mais.
Lylian Teles.

3º carta
Oi Lígia querida,
Não sei se vou ter resposta, mas resolvi arriscar. Como nunca acreditei em nada depois da morte e como sei que você também não...
Bom por aqui tudo igual, a turma ta com saudades, eu também...Pode deixar que você estará na peça, lidando com o sagrado fica mais fácil ainda.
Fico aqui, esperando teus sinais,
Beijos
Thaís.

Feliz comemora: - Então ele leu! Ele leu minhas cartas! Ele sempre leu minhas cartas! Mas por que não respondeu? Eu quero responder as minhas, eu vou responder as minhas. (Diz isso questionando os homens de nariz vermelho.)
Um deles: Você pode responder tudo que você puder responder. Mas eles só receberão quando chegarem aqui.
Ela: Então por que ainda não recebi as dele? Ele não quis responder?
Um deles: A resposta dele está aqui: (canta Valsa para uma menininha, de Vinícius de Moraes)
Com o fim a música percebe uma carta que deixou de lado, abre:
Você muda
Eu mudo
Te vejo frágil como eu,
Criança como eu, carente
Como eu, cheias de sonhos
vontades potencialidades
medos e só (pra encurtar)
enfim...
te reconheço
me reconheço.

Obrigada
Michele.

Ela sorri e se deixa levar pelos homens de nariz vermelho, os outros voltam a fazer o que fazem sempre em seus mundos imaginários.

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Floresta de Sangue

Ah, fique comigo, não vá embora, no meu coração, está o mais belo lugar.


Acreditar no tempo? Tempo? O tempo que me deixa sozinha, sozinha na batalha com o animal/floresta/animal/Mundo/floresta? Medir o tempo sem céu, dias e noites, anos, horas, minutos, segundos.


Minha pele sobre o desconhecido. A pele do desconhecido dentro de mim. Eu, mulher, engravidada, grávida de mundo, “eu to grávida, grávida de um disco voador e vou parir”.


Este mundo/animal/floresta que carrego na barriga incha meus pés e cada vez que toco o frio, quente, áspero chão sou chupada, sugada, enterrada. Tontura, vertigem, vômito.


Necessidade de carinho, “prova a suavidade da minha pele sem nenhum interesse especial”. Cabeça, pescoço, peito, cintura, número do chapéu, medida do colarinho, tamanho do sapato.


O carinho se converte em tapa soco murro. Adaptar-se, afastar-se, antecipar-se, ir de encontro, não apadtar-se, atacar, recuar, golpe, garra, pontada, retroceder. Todo colo no qual ele veio a cair quis, vez por outra, ser seu túmulo. Ah, fique comigo, não vá embora, no meu coração, está o mais belo lugar.


Morte á mães.


Aniquilamento de mim, construção de mim, ruínas de mim, reconstrução de mim, mão esquerda no braço direito, osso ilíaco nos ossos do braço e as vozes inaudíveis ensurdecedoras a me dizer:


"Use Filtro Solar"